quinta-feira, outubro 06, 2011

Não por acaso, assista!

Uma passada despretensiosa na locadora rendeu bem. Três bons filmes. O primeiro, uma indicação confiável: O Homem que Desafiou o Diabo. Divertido e criativo. Uma viagem inusitada (e bem-humorada) pela cultura sertaneja, acrescentando ingredientes pitorescos como o cabaré, o paladar (inclusive sexual), a honra, a desonra, picarices, coloquialismos, medievalismos armoriais, lirismo e ternura. Além de botijas, um Preto Velho, espíritos e o “chifrudo” em pessoa. Aliás, boa interpretação de Marcos Palmeira que conseguiu disfarçar o sotaque carioca e convencer o público (leia-se eu), na pele de Ojuara. A espevitada Dualiba consolida o talento de Lívia Falcão e tem até uma participação imperdível de Otto. Hélder Vasconcelos faz até a gente gostar do Capeta franzino, irreverente e carismático que ele interpreta.

O segundo, Mãos que Curam, produção espanhola, fala sobre um médico “bestializado” pela profissão, que abdicou da sensibilidade no trato com seus pacientes, até se deparar com um momento de perdas e reflexões. Uma situação extrema reverte a sua postura e leva-o a reavaliar sua vida e sua profissão. O filme é tocante por retratar o dia-a-dia dos pacientes, as perspectivas ou a falta delas, as doenças do corpo e da alma e a capacidade humana em ser solidário.

O terceiro é um filme especial. A sinopse me chamou atenção embora ainda não tivesse ouvido falar dele... O fato de ser uma produção da O2, de Fernando Meireles, dá credibilidade à película, daí não hesitei em locar. Boa surpresa! Gosto de enredos em que as vidas se cruzam sem obviedades e sem que os envolvidos percebam diretamente, numa trama inteligente e plausível. Na primeira parte, acompanhamos a vida de Ênio, um funcionário da companhia que regula o tráfego de veículos em Sampa. Um homem solitário, reservado, cuja rotina é monótona. Ele desempenha bem o trabalho, percebe o trânsito com propriedade e até teoriza sobre o assunto ao relacionar o fluxo das vias com a termodinâmica dos fluidos (!). Essa parte chega a ser poética (uma poesia quase crua)... Apesar de conviver com o controle do trânsito, com a cadência dos semáforos, com a logística dos setores imaginários que esquadrinham o perímetro urbano, Ênio não administra bem a sua vida pessoal. Não sabe lidar com seus sentimentos, não sabe demonstrar afeto, não é espontâneo. Teve uma filha que não conhece e um amor perdido no tempo. Aliás, a vida dele parece ter parado no tempo e o movimento é alheio, resumido aos monitores do tráfego urbano, ao qual ele se debruça em praticamente todos os seus dias. Após um acidente de trânsito (ironicamente), a vida dele toma outro rumo.

O ambiente do filme é retrô. No começo, é difícil localizar em que época se passa. Uma São Paulo frenética, alterna-se com a cidade do fim de semana, em que as ruas são liberadas para o lazer, para caminhar, andar de bicicleta, de skate, enquanto os carros desaparecem. Uma cidade moderna abriga apartamentos que remetem a um outro tempo, com tubulações de ferro, assoalhos de tacos e muito espaço interno. Realidade que às vezes a gente até esquece, quando se depara com os cubículos de hoje.

Noutra parte da história, conhecemos Pedro e Teresa. Apaixonados e prestes a morarem juntos. Pedro é lacônico, reservado e também “respira” seu trabalho, porém, ele gosta muito do que faz, trabalha com prazer, é afetuoso, doce e passional. O mesmo acidente causa uma reviravolta na sua vida, um sofrimento mudo que o transfigura. Até que ele conhece Lúcia...

Ênio e Pedro têm qualificação técnica. No entanto, o primeiro reproduz as diretrizes de um sistema, que está acima dele (num certo momento ele usa o sistema a seu favor), enquanto Pedro desenvolve um trabalho quase artesanal que envolve criação, harmonia e beleza. Ele sente a matéria-prima, toca e lê as formas, numa perspectiva lúdica.

Último ponto: trilha sonora irretocável. Além dos sambinhas de Sampa, destaca-se a música cujos versos arrematam o filme: Eu não tou à toa nesse mundo/Eu tou pra tudo/Só vou deixar meu coração/A alma do meu corpo/Na mão de quem pode...

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