sexta-feira, setembro 22, 2006

A falência do panfleto

Sinal dos tempos? Apocalipse? O que dizer da indústria fonográfica de hoje? Sempre se produziu música boa e ruim, mas atualmente há muito espaço para coelhinhos, cachorrinhas e outras anomalias zoológicas e ontológicas. De tanto joio, está cada vez mais difícil vislumbrar o trigo...
Usado indiscriminadamente o termo "música popular" pode abrigar grande diversidade de ritmos, melodias, letras e principalmente uma gradação vastíssima de qualidade que vai do zero ao cem. Em tempos de crise da qualidade musical, boas produções ficam reduzidas a um pequeno universo de apreciadores, destacando-se no meio de muita porcaria, como redentoras do bom gosto (embora longe de representar uma unanimidade que, aliás, realmente é burra, como diria Nelson Rodrigues).
Esse preâmbulo sobre música justifica-se devido aos inconvenientes do período eleitoral em que, invariavelmente, a profusão de decibéis se eleva numa proporção inversamente proporcional à qualidade sonora. Dia após dia, somos surpreendidos, nos mais diversos horários, por famigerados carros de som com jingles capazes de arrepiar qualquer gosto minimamente seletivo.
Aturar a intervenção do poder público em nossas vidas é uma coisa, afinal, abdicamos de uma parcela da liberdade individual em nome da sobrevivência (não só física mas moral, como reza o "contrato" social). Não pretendo fazer mal uso da minha liberdade nem sou anarquista mas, convenhamos que sempre é preciso reclamar para que outrem não vilipendie nossos direitos. Cadê o bom senso?
Aqueles que almejam compor (ou permanecer) no poder público já começam impondo sua presença, invadindo o espaço alheio de forma estrepidante, através dos condenáveis carros de som. Se por uma questão de cultura política ou aversão ao comportamento reprovável de muitos parlamentares e portadores de mandato executivo, poucos leêm os panfletos com as propostas dos candidatos, não temos que aturar a propaganda sonora. Os "santinhos" chamam menos atenção do que uma gestão limpa, eficiente e comprometida, algo tão incomum quanto música de boa qualidade.
O dia das eleições bate à porta: vamos escolher candidatos sérios, coerentes, altruístas e que respeitem os cidadãos, inclusive os futuros cidadãos (bebês, entre os quais incluo o meu filho que, em sua tenra idade vem sendo incomodado pelos estrondosos carros de som).

sábado, setembro 02, 2006

Nas curvas do tempo

Eis uma cena que parece fazer parte de um comercial de margarina: o pai dá instruções, incentiva a filha, solta a bicicleta... Ela pedala de forma titubeante e vai pegando o prumo, sentindo o vento da liberdade nos cabelos, certa de que o pai ainda segura a bicicleta. Vibrando de felicidade, vira a cabeça pra trás, querendo ousadamente, dizer: "solta!". Grande surpresa perceber que o pai estava lá atrás e ela guiava sozinha. O susto diante da situação e o pequeno deslize de olhar pra trás, renderam-lhe uma queda que, embora feia, não representou o abandono definitivo da bicicleta...
Muitas pedaladas depois, cá estou eu, pensando mais uma vez na questão lançada por Ceça: pra que tantas marchas na bicicleta, se não as usamos todas? Só os homens conseguem, não só usar, mas, identificar as ditas marchas... Afora as elocubrações sobre o tema, lembrei da minha infância e da presença marcante do meu pai nos meus primeiros e agitados anos da minha vida. Sei bem o que é fidelidade canina, quando penso que invariavelmente, todos os dias, ficava no portão esperando meu pai chegar do trabalho. Bastava ele apontar na esquina pra eu iniciar uma desatada carreira, que só terminava num abraço desesperado de saudade, como se eu não o visse há meses... Recordo ainda de uma de suas viagens, em que passou seis meses fora. Foi difícil de agüentar: lancei mão da camisa com que ele dormiu, na última noite antes da viagem, com a qual dormi daquele dia em diante, até o seu retorno, deveras festejado. Freud já explicou essa fixação, essa paixão que a maioria das meninas nutre pelos respectivos pais, uma oportunidade de conhecer e exercitar o afeto, mas, também de sentir o desprazer da separação, quando irrompe a adolescência, fase de rupturas.
Conflitos à parte, meu pai me ensinou bem mais do que andar de bicicleta. Seu exemplo me aproximou dos livros, da curiosidade de descobrir o mundo, um mundo maior do que aquele mundinho em que nascemos, através dos caminhos da percepção e da imaginação.
Hoje, meu pai pouco lembra o jovem formoso da minha infância, no entanto, sei que ele ainda é o mesmo que, em quase todas as noites frias de Garanhuns, ia me cobrir com uma manta de lã e me desejar bons sonhos.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Amor de muito


Hoje recordo aqueles longíquos dias lá em Xaréu... Entre umas cervejas e uns caldinhos de marisco no Bar Lua e Estrela, de Pena, invariavelmente vinha aquela música do CS&NZ: "a menina esperava seu homem chegar/e olhava todo dia a linha do mar/ele só quer escutar o que ela quer dizer/ela sabe do desejo do seu coração/ aí ela disse: 'vai querer'?" Além da memória, as fotografias também falam de momentos distantes no tempo, em que eu olhava pro lado e sentia que o meu homem tinha chegado, se não do mar mas pelo menos das areias de Olinda, onde em outro setembro, estávamos reunidos pra encher a cara de uísque (roubado por um de nossos amigos da coleção etílica do pai), ao som do violão (do mesmo amigo, fornecedor de uísque), numa bela noite de lua, depois de umas cervejas quentes e uns "carreteiros" no Bigode, seguidos de uma pizza no extinto Pequiá.
Bons tempos aqueles, em que uma cervejada parecia o mais grandioso deleite, seguido de todas as possibilidades lúdicas que uma farra quase sempre proporcionava. Mesmo com todas as obrigações acadêmicas, a boêmia imperava: entre cachaçadas e ressacas, tudo era possível de cumprir. Durante o semestre mais estressante da faculdade, eu bebia quase todos os dias no bom e velho Bigodão e mesmo assim dava conta das exigências de todas as disciplinas. Hoje, se eu bebesse um terço, seria candidata provável a entrar em coma alcóolica. Mas o Bigode, cenário de inocentes pequenas loucuras, segue como uma saudosa lembrança, já que hoje ele continua existindo, porém, irreconhecível. Se meu paladar não encara mais cerveja quente, minha consciência e minha idade também não permitem os desvarios do passado. Mas sinto falta daquela época em que me deslumbrava com os poemas marginais de Miró, recitados em inesperados e surpreendentes gritos, das calouradas da UFPE, da sensação de um coração cheio de amor e esperança. O amor ainda preenche meu coração mas é um outro amor. E o homem? Acho que voltou pro mar... Pra terminar, escolho Neruda: "... tão breve o amor, tão longo o esquecimento."