domingo, março 09, 2008

Insônia

Suportar o mundo, perseguindo a alegria da infância. Colher cinzas, alimentando flores. Vestir mortalhas, enquanto gera. Penar por culpa, parindo novos calafrios. Alma renascida a cada golpe. Peito que regela para voltar a abrasar, inteiro, pulsante e transbordante. Os extremos do caminho reforçam: depois da derrota, recompõem-se as energias. Pela coragem, move-se o destino.

sábado, março 01, 2008

Cheiro de orvalho...

Emoções? Temos muitas pela vida. Tantas que sequer lembramos de todas, inclusive, por uma questão prática: a memória é seletiva, não comporta tudo o que vivemos! Imagine fazer um retrospecto da vida, lembrando de absolutamente tudo. Seria infindável... Dificultaria até a organização do raciocínio. Lembramos do que nos marcou muito. Seja algum de bom, ou de ruim. Ontem, não sei por que motivo, ocorreu-me uma lembrança que há tempos eu não tinha. Uma reminiscência que talvez tenha algo a ver com uma mensagem em que Ebinho, velho amigo da infância, aludia a uma foto do álbum (da minha página do orkut), relembrando os idos dos anos 70, quando, ainda em muito tenra idade, viramos vizinhos e amigos-irmãos, em Garanhuns. Esses momentos trazem muita emoção: vivenciamos, de longe, um tempo que não volta mais e pensamos em quanto tempo ainda nos resta... Mas, voltando à lembrança que me veio à memória ontem, revivi aquela sensação de quando voltei a Garanhuns, pela primeira vez, depois que tinha ido morar em Recife. Foi uma sensação única e uma emoção da qual não esquecerei. Aconteceu de supetão, no final dos anos 80, quando uma tia, passou na minha casa e fez o convite pra irmos fazer um passeio. O destino final foi a minha cidade natal, onde passei os bons e maus momentos da minha infância. A volta trouxe lágrimas aos olhos, incontrolavelmente. Elas rolavam por si. Algo incomum pra mim, que sempre evitei chorar em público. Tinha vergonha... Era quase um tabu. Sinal de derrota, ou coisa assim, que o meu orgulho (ainda infantil) aprendeu a controlar... Isso era tão forte que, certa vez, houve um acidente na vila em que eu morava que resultou na morte de um menino. Ele era muito reservado, quase não brincava com a gente e vivia sempre quieto, pelos cantos. Quando ele estava, timidamente, começando a se enturmar, veio o dia fatídico: seu irmão mais velho jogou thinner na churrasqueira e o fogo o atingiu. Lembro de ter ido ao velório com minha mãe (no interior, os velórios aconteciam em casa mesmo). A parte mais comovente foi quando retiraram uma toalhinha que cobria o seu rosto. Era pra mim o primeiro assombro da morte. Chorei durante a semana inteira que se seguiu. Sempre atrás do sofá de casa, pra que ninguém testemunhasse minhas lágrimas. Essas lágrimas, tão contidas, transbordaram no meu retorno a Garanhuns. Saíram da alma. Compuseram uma emoção profunda, visceral, primordial... Ali era o lugar que fazia parte de mim, pra onde eu não voltaria jamais, a não ser nas minhas memórias: naqueles quintais onde reinávamos absolutos, terreno das brincadeiras e da imaginação, refúgio que os adultos não compreendiam e não poderiam invadir; da sensação de liberdade, ao correr pelo meio da rua, no parque, na praça, no contato com a areia (primeira transgressão); no cheiro de orvalho, presente em quase todas as manhãs... Ah, o cheiro de orvalho... Este é particularmente marcante. Quando comecei a estudar na Federal, sempre passava, de ônibus, na frente do prédio da Sudene, onde uma fonte irrigava o mato que, por isso, exalava um cheiro parecido com aquele do orvalho. Automaticamente, eu fechava os olhos e, simbolicamente, retornava a Garanhuns, porque a memória é ativada pelos sentidos e, como dizia Calvino, nas "Cidades Invisíveis", na fala do veneziano Marco Polo: "cada vez que faço a descrição de uma cidade, digo alguma coisa sobre Veneza", o que me permite dizer que, na minha contemplação sobre Recife, eu procurava a minha cidade, nas entrelinhas. Pra terminar, um pouco mais de Calvino: "- As imagens da memória, uma vez fixadas pelas palavras, apagam-se - constata Polo. - Pode ser, Veneza, que eu tenha medo de perdê-la de uma vez se a descrevo. Ou pode ser, falando de outras cidades, que eu já a tenha perdido pouco a pouco". O título inicial deste post seria "Lágrimas". Algumas vieram enquanto escrevia. Mudei de idéia. Preferi o orvalho: hoje moro por trás da Sudene. Retorno simbólico à fonte... ao útero.